Nove minutos foram suficientes para mudar a vida de Kedydja Cibelly
Borges, aos 20 anos. A estudante de engenharia de produção da
Universidade do Vale do São Francisco (Univasf) ficou por quase 10
minutos embaixo do ônibus em que viajava para a cidade em que mora,
Salgueiro (PE), após o veículo ter capotado e saído da estrada, em 16 de
novembro de 2020. O rosto de Kedydja foi gravemente afetado: parte da
testa dela afundou com o impacto, a sobrancelha foi danificada e a
cartilagem do nariz foi completamente comprometida. Somente agora, sete
meses depois do acidente, se recuperando de cirurgias reparadoras e
tendo removido um caco de vidro com o qual conviveu por sete meses, ela
se sente confortável em se olhar no espelho novamente, se reconhecer e
se gostar.
A
piauiense conquistou judicialmente o direito a ter as cirurgias
reparadoras de danos, custeadas pela empresa responsável pelo trajeto, a
Autoviação Progresso. Ela viajava de Picos, Piauí, onde foi votar nas
últimas eleições municipais, para Salgueiro (PE), onde mora com o noivo.
O acidente ocorreu minutos antes do veículo chegar ao destino.
Em
10 de junho, ela viajou até São Paulo, onde fez uma rinoplastia para
colocar a cartilagem do nariz no lugar certo. “Eu consegui me olhar de
novo no espelho. Sabe a sensação prazerosa de conseguir o que tanto
deseja? É isso. Eu estou vivendo de novo, um novo começo, que tanto
desejei”, comemora.
Na cirurgia, o especialista
encontrou um pedaço de vidro que impedia a piauiense de respirar
livremente durante todo este tempo. “Eu não imaginava que ainda tinha
algo desse tamanho em mim. Em todos esses meses, eu encontrava pedaços
pequenos de vidro e de asfalto no meu rosto, mas nada desse tamanho.
Quando ele tirou, foi um alívio”, conta
Este foi o primeiro de inúmeros procedimentos cirúrgicos que ela
vai passar por, no mínimo, três anos, para reparar as marcas profundas
no rosto deixadas pelo acidente. De acordo com relatório da Polícia
Rodoviária Federal (PRF), o motorista teria dormido na direção do
veículo. Parte da testa de Kedydja afundou com o impacto, a sobrancelha
foi danificada e a cartilagem do nariz foi completamente comprometida.
“Eu
não perdi a consciência e senti todo o desespero e dor do momento. O
cinto de segurança do ônibus não me segurou e fui arremessada para fora,
mas com uma parte do corpo para dentro”, lembra. “Quando ele capotou,
meu rosto e corpo foram arrastados pelo chão até o veículo parar
totalmente”, conta.
Por sete meses, ela diz não
ter conseguido se olhar no espelho, desenvolveu depressão profunda e
foi diagnosticada com um estado de saúde mental que “poderia causar
risco de vida” a ela mesma. O sofrimento de Kedydja foi acentuado pela
falta de apoio da empresa responsável pelo ônibus, a Autoviação
Progresso. Até abril deste ano, ela não havia recebido nenhum auxílio da
companhia de transporte.
Com a falta de
recursos, o atendimento hospitalar vivenciado por ela foi precário desde
o começo. No momento do acidente, Kedydja foi levada a um hospital por
uma pessoa que passava pela rodovia e demorou cerca de 16h para fazer
exames e ser devidamente atendida.
Depois, foi
transferida para um hospital no município de Petrolina (PE), no qual fez
a primeira cirurgia. “Os médicos tiraram muitos vidros. Tinha pedaços
enormes embaixo do meu couro cabeludo. Eu perdi alguns nervos do rosto e
ele ficou dormente em algumas partes. Por questões de centímetros, não
fiquei cega”, revela.
Um mês depois, no retorno
do procedimento, Kedydja ouviu a frase que abriu o período mais difícil
da vida dela. “Ele (o médico) falou que eu tinha que me conformar com o
meu rosto porque não tinha jeito nenhum para recuperá-lo. Meu chão
sumiu e eu achava que tinha acabado tudo. Doeu muito ouvir isso de um
médico”, desabafa.
A estudante não podia
custear consultas com outros médicos e especialistas, assim como a
família: o pai está desempregado há três anos e vive em busca de
oportunidades de emprego. A situação se tornou, então, sem saída. A
chave mudou apenas quando, em maio deste ano, ela conquistou o direito
de fazer as cirurgias necessárias para reparar os danos. No entanto, as
marcas eram mais do que estéticas
A mais longa das esperas
Alegre e cheia
de vida, a jovem passou a viver dias desafiadores. O estresse
pós-traumático e as feridas fizeram Kedydja se isolar em casa e
desenvolver um quadro de depressão profunda. Ela passou a usar um
curativo na testa e no nariz e se sentia incomodada com os olhares de
outras pessoas.
“Eu vivia de cabeça baixa,
tinha vergonha de andar na rua. Todo mundo me olhava e eu me sentia mal.
Eu não conseguia me olhar no espelho e me ver sem curativo, porque eu
tinha medo do que eu ia ver”, lembra. Práticas comuns do cotidiano de
qualquer pessoa se tornaram um empecilho para ela: Kedydja não consegue,
até hoje, estar dentro de um veículo sem se sentir angustiada, ansiosa e
com medo.
Entre amigos e familiares, ela
sempre ouvia que precisava aceitar a nova realidade. “Eu estava
desesperada e sem chão”, diz. Vaidosa, a piauiense sempre gostou de
cuidar de si e da aparência, era comum aprender e testar maquiagens
novas e tirar fotos para registrá-las. “Agora eu não consigo mais. Eu
olhava para meu rosto e lembrava de mim coberta de sangue, no dia do
acidente”, conta.
A estudante também se tornou
uma pessoa irritadiça. De personalidade calma, ela passou a perder o
humor com facilidade. “A psiquiatra que me atende disse que pode ser
alguma sequela do acidente, alguma parte do meu cérebro pode ter sido
atingida e mudado meu comportamento. Eu ainda não fiz exames para ver
como ele está”, revela.
Mesmo com o quadro
grave, Kedydja encontrou forças na família e no noivo, com quem mora.
Além disso, a fé se tornou uma importante aliada neste processo. “Eu me
apeguei muito a Deus, eu pedia muito a ele. Me lembro das noites que
passei chorando, pedindo e conversando com ele. Foram muitas conversas
que eu tive com ele, viu?”, lembra.
Foi com o
auxílio das pessoas queridas e da sua crença que ela foi atrás de
justiça. Em março, entrou em contato com um advogado especialista em
indenizações e responsável pela vitória de casos como o da
influenciadora Débora Dantas, que perdeu o rosto após o cabelo prender
em um motor exposto em um kart. Como primeiro ato, o profissional
submeteu Kedydja para avaliação psicológica.
“O
psiquiatra identificou uma depressão profunda e graves indícios de
perigos emocionais, riscos inclusive de vida. Ele recomendou, com
urgência, um tratamento psiquiátrico”, conta Eduardo Barbosa. O pedido
por acompanhamento psiquiátrico foi a primeira vitória do caso,
conquistada com insistência. Em seguida veio o custeio de viagens a São
Paulo, para consultas com especialistas e orçamento dos reparos faciais,
só então a disputa com a empresa de transportes teve início.
“Os
especialistas afirmaram, em relatórios, que serão, no mínimo, três anos
de tratamento. São muitos procedimentos”, diz o representante.
Inicialmente o pedido de liminar foi rejeitado em Salgueiro, mas acabou
autorizado junto ao desembargador Antônio Fernando Martins, da 6ª Câmara
Cível, no Recife (PE).
Omissão cobrada judicialmente
Desde
o acidente até o momento, segundo a vítima, a Autoviação Progresso não
fez qualquer contato nem ofereceu auxílio. “É uma grande falta de
empatia. Nunca pensaram em mandar uma mensagem pra mim, me confortar. Eu
queria apenas uma palavra, seria muito importante nesse momento e eu
nunca tive. Eles nunca falaram diretamente comigo”, conta.
De
acordo com o advogado Eduardo Barbosa, caberia à empresa a
responsabilidade pelo acidente. “Eles tinham a obrigação de prestar
socorro. Além disso, ao longo de quatro meses eles nunca tiveram nem
mesmo a curiosidade de saber o estado dela”, declara e completa: “o que
lamento no Brasil e ficamos impressionados é que parece que os direitos
das vítimas não existem. A pessoa é tratada como um bicho e parece ser
culpada da situação em que se encontra. Graças a Deus este país não é um
faroeste, onde é cada um por si, e há leis. Deixaram uma moça
abandonada, uma jovem, que só teve o azar de comprar um passagem da
empresa deles”
Outro lado
Até a publicação desta
reportagem, o Correio não conseguiu resposta a Autoviação Progresso. No
entanto, este espaço ficará aberto para a empresa se pronunciar e será
atualizado tão logo recebamos um posicionamento oficial
ATENÇÃO: Os comentários postados abaixo representam a opinião do leitor e não necessariamente do nosso site. Toda responsabilidade das mensagens é do autor da postagem.